E emendou, quase sussurrando, que nas estradas, por pior que fossem, ele fora feliz de verdade

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The Letter by Mary Cassatt


“é estúpido te escrever uma carta que você não vai ler. mas você sempre me mostrou a imensa beleza das coisas estúpidas. então saiba, quer dizer, não saiba, que o jornaleiro da esquina ainda insiste em não me cumprimentar. que aquela garota que você achava gostosa ainda esbarra em outras pessoas porque caminha falando no celular. o cachorro que dormia na porta do pet shop abandonado se mudou pra baixo do toldo do borracheiro. ele o chama de graxa e ainda me pergunta quando você vai buscar seus sapatos. a perna mecânica que aquele morador de rua jogava nas pessoas se quebrou em duas. ninguém saiu ferido. o senhor que alimenta os pombos comprou óculos escuros grandes demais para seu rosto, diz ele que pertenceram a james dean, só pra completar falando da juventude transviada que fuma maconha na rua ao lado da padaria. ele ainda me pede desculpas, com certa dose de malícia, por dizer a palavra 'transviada'. os pombos não ligam. aquele cara saradão, com seus cem modelos de camisetas abercrombie & fitch, ontem deixou escapar o fone do ipod. ele ouvia 'play the funky music white boy' e, pela primeira vez, atravessou a rua. aquele velhinho que fica no ponto de táxi, vestindo aquele colete azul com 'auxílio-táxi' escrito em amarelo, me contou que já foi caminhoneiro. e emendou, quase sussurrando, que nas estradas, por pior que fossem, ele fora feliz de verdade.

Adriana Brunstein